quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Diário de bordo - compilação dos manuscritos de Gabrielle Cavalcanti

Ano de 2915. Devido às ações dos seres humanos, a Terra tornou-se um lugar desértico, onde largas extensões de terreno árido e estéril se contrapõe a geleiras de água poluída e pântanos sulfurosos. Os sobreviventes se reúnem em torno de pequenos oásis, tentando cultivar a terra seca, agarrando-se desesperadamente à vida. Uns poucos se arriscam, e saem em busca das terras férteis de que falam as lendas, mas são exceções. Todos têm medo de se aventurar no Grande Deserto. Ou quase todos...

Meu nome é Gabrielle Cavalcanti. Tenho 18 anos, sou órfã de pai e mãe, e tudo o que me resta de "família" é um rapaz da minha idade, que porta nas veias a mesma maldição que esta que vos fala. Leonardo é a única pessoa que me entende e que me apóia. E eu o adoro do fundo do coração por isso.

Leonardo Whitney é meu amigo e cúmplice desde que "a praga" levou nossos pais. Uma doença misteriosa que abateu os da minha raça, um a um. Restamos apenas nós dois, que ainda não tínhamos começado a transformação, ambos com 12 anos. Desde então somos uma equipe. Nossas brigas são freqüentes, mas não sabemos viver um sem o outro...

Melhor não me perder em reminiscências. Vou contar os fatos, e você que chegou a essas linhas, tire suas próprias conclusões.




Todos nos temiam. Afinal, boa parte deles, apesar de não saber de nossas... hum... "necessidades alimentares especiais", conheciam nossa fama, de sermos os assassinos mais eficientes do deserto. Tirar vidas humanas era o nosso sustento. Éramos, modéstia à parte, os melhores do deserto. Respeitados e temidos onde quer quer o vento quente das tempestades de areia levasse nossos nomes.

Mas tudo mudou quando o governo descobriu o que realmento somos. Tivemos que fugir do pequeno oásis-cidade em que vivíamos, e é por isso que você vai nos encontrar em cima de um quadriciclo, a caminho do desconhecido, tendo por guias uma bússsola, um mapa de fontes duvidosas e nossa convicção de que as lendas eram verdadeiras. Levávamos mantimentos, e também uma gaiola com alguns roedores do deserto, bichinhos de orelhas compridas, pêlo cor de areia, olhos negros e bigodes compridos como os dos felinos. Usávamos aqueles animais para aplacar a sede de sangue, quando ela se avolumava a ponto de se tornar insuportável. Era fácil e prático usar aqueles animais, já que eles se reproduziam rápido e tinham ninhadas grandes. Mas como eu tivera uma crise de abstinência alguns dias atrás, só tínhamos dois casais de bichinhos.

- Leo... - eu disse, baixinho, mas como o motor movido a bateria solar fazia apenas um zumbido baixo, ele ouviu, e resmungou para me incitar a prosseguir - quando vamos parar?
- Só quando o Sol se pôr.

Eu suspirei, e encostei a testa na nuca dele. Leonardo acelerou mais.

- Acha que vamos encontrar alguma coisa? - perguntei, e ele deu um peteleco na bússola presa ao guidão:
- Dizem que existe um oásis grande ao norte. Se existe mesmo, vamos achá-lo.
- Tem certeza?

Ele poderia ter respondido algo do tipo: "não, mas se não existir, vamos morrer de fome". Mas riu e disse:

- Não acredito que você ainda duvida da minha intuição.

Eu também ri.

- Você sempre sabe o que dizer pra me animar, não é?
- Esse é o meu trabalho, chefinha.

Não nos falamos mais, até o sol descer no horizonte. Quando isso aconteceu, paramos, armamos nossa barraca, comemos um pouco da comida desidratada e fomos dormir.


Nos dias que se seguiram, não ocorreu nada digno de nota, além de Leo ter uma leve "crise" e matar três roedores. Nada de mais, durante três dias nossa rotina se resumiu a acordar, levantar acampamento, vestir as roupas de proteção contra o sol, pé na estrada, parar à noite, comer, dormir. Durante o dia, conversávamos mais para exercitar a fala do que por ter assuntos realmente. Aquilo me deprimia tanto...

Mas fazer o quê? A viagem continuou, e com ela, nossas esperanças de encontrar um lugar melhor aumentavam mais e mais, impulsionadas pela brisa cada vez mais fresca, pelo sol cada vez menos intenso e a areia cada vez menos seca. Continuamos...





Espreguicei-me lentamente, esticando braços e pernas e arqueando a coluna, fazendo as articulações estalarem. Suspirei e sentei-me com um largo sorriso no rosto. Não dormia tão bem desde que meus pais tinham morrido. Leo já tinha levantado, óbvio, ou eu não teria espaço para me esticar daquele jeito. Peguei as roupas de proteção e saí.

Leo estava sentado sobre o quadriciclo, meio vestido, as sobrancelhas contraídas, o olhar fixo no nada. Ele usava as calças e botas necessárias para a sobrevivência na aridez desértica, mas a camiseta encardida era leve e sem mangas. Apesar de dormimos lado a lado todas as noites (e até mesmo abraçados, quando os cobertores não conseguiam afastar de todo o frio da madrugada), jamais tínhamos nos tocado com mais intimidade que dois irmãos. E naquele momento, ao vê-lo com os músculos à mostra (ele não tinha muitos, mas os que tinha eram bem definidos), as feições recortadas contra o sol nascente, senti o coração disparar, as mãos suarem e e o sangue aflorar ao rosto.

"Controle-se, Gabrielle!", eu disse a mim mesma, decidida. "Isso é uma reação perfeitamente normal, já que você é uma mulher, ele é um homem e os dois são adultos. É tudo biologicamente explicável!"

- Leo? - chamei, insegura - aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu, Gab. Dá uma olhada nisso.

Ele tirou alguma coisa do bolso, e jogou para mim. Peguei ainda no ar, e quando olhei, reconheci a tira de couro que antes prendia a bússola ao quadriciclo. Fora visivelmente cortada.

- Mas... - balbuciei, desconcertada - mas... mas como?!
- Aí é que está - ele murmurou sombriamente - nós notaríamos se alguém se aproximasse a ponto de cortar isso e levar nossa bússola.
- E não foi um animal - examinei o corte no couro curtido - a marca é de um golpe só, preciso, de faca bem afiada. Será que foi um ladrão?
- Nossa comida, nossa água, ferramentas, baterias de reserva e carregadores estão todos nos lugares. E se fosse um ladrão, teria levado o quadriciclo, que é o mais valioso de tudo. Pelo visto, só querem que a gente se perca, porque nossos mapas também sumiram.
- Droga. Você viu pegadas?
- Não. Andei uma boa distância em torno daqui, e não vi pegadas em lugar nenhum. Mas não tem problema, a gente se orienta pelo sol. Só o que temos a fazer é ir para o norte.

Assenti. Leo desceu do quadrciclo, pegou a jaqueta e a capa, e me beijou no rosto.

- Anda, pequena. Veste logo as suas roupas, que eu vou desmontar a barraca.
- Tá bom.

Peguei minhas "roupas de guerra", mas antes de vesti-las, olhei uma última vez para a tira de couro cortada. Quem quer que tivesse feito aquilo, queria que encontrássemos aquela pista. Não havia outro motivo para deixar para trás uma prova tão óbvia, além de talvez a pressa. Mas quem tinha tempo para apagar pegadas...

Sacudi a cabeça, larguei a "prova do crime" na areia seca e me vesti. Teríamos um longo dia pela frente.




Insônia. Eu devia ter suspeitado que aquela noite de sono deliciosa e ininterrupta era a calmaria antes da tempestade, como o mormaço quente que precedia as ventanias furiosas do deserto. Quanto mais me revirava, tentando conciliar o sono, mais distante ele parecia. Leo, que não tivera o mesmo azar, ressonava baixinho.

Suspirei muito profundamente e virei-me de costas para ele. A areia macia sob o fundo de tecido da barraca sempre fora um ótimo colchão, mas subitamente eu tinha começado a achar desconfortável. Praguejei, e tornei a me virar de frente para Leonardo. Levei um susto ao encontrá-lo de olhos abertos.

- Dá pra sossegar e me deixar dormir, Gabrielle?
- Bem que eu tô tentando!
- Não parece!
- Cala a boca e me deixa dormir, Leonardo!
- Cala a boca você, que começou com isso!
- Mentira!

Ele inspirou profundamente, fechou os olhos e pareceu contar até dez. He, he, he. Eu conheço meu amigo... no meio de uma discussão acalorada, o melhor modo de fazê-lo se calar para não trucidar o interlocutor era disparar um veemente grito de "mentira!" no meio da briga. Quando ele finalmente se controlou, abriu os olhos e me encarou com uma expressão zombeteira:

- Pelo visto, só tem um jeito de calar essa sua boca.

Leo me puxou pela cintura e me beijou.

Anote aí: até os dezoito anos, três meses, cinco dias, dezessete horas e quarenta e dois minutos de vida, Gabrielle Cavalcanti nunca tinha sido beijada. Patético, eu sei. Ridículo, eu sei. Mas digamos que com a vida que eu levava, era meio complicado arranjar um namorado...

Então. O beijo. Nem sei descrever o que foi que me passou pela cabeça, se é que passou alguma coisa. Senti-lo assim tão perto... eu nunca o tinha abraçado daquele jeito, nunca o tivera tão perto, nunca tinha sentido seus lábios nos meus...

Mas subitamente nos afastamos, e nossos olhos se encontraram.

- Você sentiu? - ele perguntou, num sussurro, e eu confirmei.
- Está perto. O que quer que seja, está perto.

Nos sentamos na barraca, sem fazer ruído. Fiz meus olhos cintilarem, e passarem do azul-escuro ao rubro. Imediatamente, o interior da barraca tornou-se mais claro. Agucei a audição, enquanto Leo fazia o mesmo. O vento soprava forte. Era um grito horrendo, alto e ensurdecedor, que só podia significar uma coisa...

- TEMPESTADE DE AREIA!

Nos precipitamos para fora da barraca, levando o que deu: roupas emboladas, a gaiola dos mascotes, uma coberta. Montamos no quadriciclo, e Leo deu a partida. Nada.

- Funciona, porcaria, FUNCIONA! - olhamos para a direção de onde vinha o rugido do vento. A tempestade se avolumava, crescia, avançava. Leo saltou do veículo e agarrou meu braço - vem, Gab!

Puxou-me para baixo, e desatamos a correr para o mais longe possível de nossas coisas, que o vento com certeza jogaria sobre nós. Quando o choque da tempestade derrubou-nos de bruços no chão, Leonardo cobriu nós dois com a manta espessa de lã, me abraçou com força e ficou imóvel sobre mim. De olhos fechados, eu podia ouvir seu coração disparado e sentir sua respiração rasa e cheia de medo. O ruído do vento sobre nós era quase tão assustador quanto os pesadelos que eu tinha com a morte dos meus pais. Meu coração parecia querer sair pela boca, o ar faltava, os tímpanos doíam e a cabeça latejava. Aquilo era o próprio inferno...

E tudo apagou.





Acordei, mas não abri os olhos. Estava tudo tão confuso...

Lembrei-me de Leonardo. Do desmaio. Da tempestade. Do beijo. Só não me lembrava do motivo de estar numa cama macia, forrada com lençóis limpos e perfumados.

Sentei-me na cama, e olhei em redor. O quarto era espaçoso e arejado, com paredes de um amarelo suave, móveis de ótimo gosto e um enorme espelho de moldura dourada.

Levantei, me perguntando que diabo de lugar era aquele. Meus pés tocaram a pedra fria do chão, comprovando que não era um sonho. "Será que eu morri?", pensei, indo até o espelho.

Eu parecia a mesma de antes. Os cabelos encaracolados e curtos tingidos de rosa-chiclete (será que o cabelo continua tingido depois que morremos? Acho que não, então estou viva), os olhos de um azul tão escuro que se aproximavam do violeta, mas o que me surpreendeu foi que pela primeira vez na vida eu estava me vendo com roupas bonitas e femininas. Enquanto dormia, tinham me banhado e me colocado um vestido branco, longo, com um decote em "v" modesto. Se Leo me visse daquele jeito...

Esse pensamento me arrastou para a realidade. Eu tinha que sair daquele quarto, achar Leonardo, e...

- Gab, você acordou!

Era ele que entrava no quarto. Se já fiquei surpresa por vê-lo, fiquei ainda mais ao notar que usava roupas limpas e que tinha tomado banho, assim como eu. Também estava descalço, vestia camisa e calças brancas, realçando ainda mais o negro-azulado de seus cabelos lisos presos para trás. Seus olhos verde-esmeralda brilhavam animados, um sorriso vitorioso nos lábios.

- Leo, que raios tá acontecendo aqui?
- É uma história longa. Vem comigo, Gab.





Eram humanos. Deveria haver uns oitocentos, talves até mil, e nos veneravam como a deuses. Não falavam o dialeto do deserto (uma mistura desconexa de várias línguas antigas), e sim o puro portugês abrasileirado, assim como nós. Foram eles que roubaram nossos meios de orientação, por temerem que fôssemos mercenários à procura de escravos. Mas quando descobriram que éramos vampiros, ficaram extasiado. Éramos os "enviados", como Leo explicou, citados em uma profecia antiga, que falava sobre a praga que dizimara nossas famílias. Falava das guerras que destruíram o meio ambiente e as cidades, dizendo que, paradoxalmente, aqueles conflitos eram necessários para conter a ambição dos seres humanos e dar à mãe natureza os preciosos anos para se recompôr dos danos a ela causados nos últimos milênios. E dizia que quando tudo parecesse perdido, surgiriam duas crianças vindas das trevas e do deserto, que os conduziriam à grandeza, à paz e ao progresso.

- E essas crianças somos nós?! - perguntei, quando ele acabou de me explicar. Estávamos num terraço, sob a luz do sol poente, vendo a movimentação da "cidade" lá embaixo. O lugar em que estávamos era um palácio antigo, no alto de uma colina, e tinha uma visão privilegiada do povoado - Absurdo!
- Absurdo ou não, eles acreditam nisso. Pense nas possibilidades! Nós podemos reerguer essa terra, podemos viver em paz com os humanos, podemos começar uma era diferente. Gab, podemos trazer progresso e beleza a esse lugar.

Debrucei-me no balaústre do terraço, e olhei para aquela terra estranha que nos tinha acolhido. As construções eram baixas e pintadas de branco, para refletir a luz do sol. Os pequenos lagos aqui e ali serviam de bebedouro aos animais e de recreação para as crianças. Mulheres com túnicas coloridas puxavam água nos poços. Ao longe, pessoas cultivavam a terra. Senti meus olhos se encherem de lágrimas, ao me lembrar das fotos que mamãe me mostrava, do século XX. Água em abundância, verde, felicidade...

- Leo...

Ele me abraçou, e apoiou o queixo em meu ombro.

- Diga.
- Quanto tempo a Dinastia de Drácula levou para erguer seu império?

Sua risada rouca e profunda me fez chorar mais ainda em silêncio.

- Em torno de cinco séculos. E eles governaram por mais de dois milênios.
- Por quanto tempo nossa dinastia vai durar?
- Durará tanto quanto meu amor por você, Gabrielle - ele me virou para si, e enxugou minhas lágrimas - para sempre.

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