quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Especial

Eu tenho um carinho especial por esse conto... e queria dividi-lo com vocês. Pena q o fim... ah, se querem saber, leiam!

Juramento


- Espalhem-se, rápido! Queimem as tumbas, destruam os covis, não quero ver pedra sobre pedra!

O sub-comandante olhou para a "general", que desembainhou a espada.

- E quanto a mim?
- Acompanhe-os, William. Vão precisar de você.
- Mas o mestre deles...

Os olhos claros dela faiscaram, determinados, firmes, decididos:

- Ele é meu.

Empinou o cavalo e galopou na direção do castelo.

***


Aconteceu numa noite de inverno. As ovelhas e cabras se debatiam contra as tábuas do curral, berros e balidos agoniados se mesclavam aos relinchos desesperados na cocheira. A mãe e os irmãos saíram, deixando-os dentro do quarto, enlaçados num abraço trêmulo de medo, enrolados no cobertor. Repetiam um para o outro que tudo ficaria bem, que devia ser só um cachorro estranho que aparecera no curral, que ao ver os lampiões acesos o animal iria embora... repetiram essas palavras úmidas de lágrimas tantas vezes que elas tornaram-se como um mantra sussurrado e sem sentido que embalou os longos minutos de espera...

E os gritos começaram.

Xingamentos, preces, palavras desconexas. A voz da mãe foi a primeira a se calar, logo seguida das dos irmãos mais velhos. Ao mesmo tempo, os animais silenciaram. Os pequenos se abraçaram com mais força ao ouvir um estrondo na cozinha. Passos. A porta do quarto foi violentamente arrancada das dobradiças, e o monstro apareceu.

Sua forma lembrava um ser humano, mas a maldade demoníaca em seu rosto foi o suficiente para convencer as duas crianças de que aquilo podia ser qualquer coisa, menos um mortal como eles. Aparentava ser um homem, com em torno de quarenta anos, cabelos começando a grisalhar, barba rala, vestido com andrajos. Seu rosto e suas roupas esfarrapadas estavam cobertos de sangue fresco, e seus olhos eram brasas brilhantes e vermelhas na penumbra do quarto. Sua boca se abriu, revelando longos caninos de fera, anormalmente brancos e afiados. Os braços das crianças já estavam dormentes por causa do abraço apertado, mas a visão da criatura os fez enlaçarem-se mais forte.

O monstro fez menção de avançar sobre eles, mas não o fez. Em vez disso, seu esgar maligno desapareceu, o fogo infernal de seus olhos se apagou e ele cambaleou, com uma lança de madeira atravessada no peito, cravada por trás. Um golpe de espada, vindo da mesma direção, decepou sua cabeça, que foi ao chão ainda com as pálpebras tremendo.

E eles vieram como anjos, e os tiraram dali.


***


Ela entrou no palácio. Tinha sido ali mesmo que...

Sacudiu a cabeça. Péssima hora para recordações. Precisava se concentrar em matar o vampiro. E depois, quem sabe, sair de lá com vida...

Caminhou sem medo pelos corredores, até o salão de baile. Abriu as pesadas portas duplas com algum esforço, e entrou.

O salão era gigantesco. Devia ter quase um quilômetro quadrado, as cortinas de veludo que adornavam as janelas altas eram vermelhas, o piso era de mármore polido e estátuas de bronze enfeitavam o local. A caçadora estremeceu. Tinha sido ali, há tanto tempo...

- Ora, ora, ora... vejam só quem veio para a festa...

***


Os passos de Diogo ecoavam no piso de pedra da mansão que, nos últimos vinte anos, fora seu lar. Quem o visse não diria que era um soldado: vestia-se todo de negro, com uma cruz de prata refulgindo contra o tecido escuro de suas roupas, o rosto de traços finos ligeiramente queimado de Sol, emoldurado por cabelos de um tom tão sombrio quanto uma noite sem Lua, os olhos de mesma cor parecendo mirar mais suas próprias profundezas que o ambiente externo. Levava a espada camuflada sob a capa, assim como a fina porém letal estaca de madeira.

- Está na hora, Diogo - murmurou para si mesmo, ao pousar a mão na maçaneta. Falar consigo mesmo não era lá um hábito muito normal, mas que diminuía a solidão inspirada pelo ambiente lúgubre das florestas de Ardennes - é hora de dizer adeus.
- O que disse, irmãozinho?

Ele se assustou, e virou-se. Deu de cara com a pessoa que estivera procurando: Daniella. Sua Daniella. Sua irmã gêmea. Até então estava decidido a dizer tudo o que precisava dizer, sem dó nem piedade, mas ao olhar naqueles olhos azuis tão diferentes dos seus mas ao mesmo tempo tão iguais, sentiu sua resolução fraquejar.

Suspirou. Por que diabos era tão difícil?

- Daniella, precisamos conversar.
- Sobre o quê?
- A missão que lord Belmont me deu.

O olhar dela tornou-se preocupado.

- Para onde você vai?

Diogo inspirou profundamente antes de responder:

- Para os Cárpatos.

Os lábios rosados de Daniella entreabriram-se, mas demorou algum tempo até que ela pronunciasse algum som.

- Para... os Cárpatos?
- E de lá para a Valáquia.

Ele achara que a irmã ia chorar e se descabelar. Mas a jovem encarou-o com firmeza, e quando falou seu tom de voz foi resoluto:

- Vou com você.

Foi como se algo viscoso, gélido e sufocante descesse pela garganta de Diogo.
Não. Ela não podia ir. Ele tinha um péssimo pressentimento sobre essa viagem, e não queria que ela fosse e se machucasse...

- Não, você não vai! Dani, é perigoso demais, e...
- Vou com você, mano - a garota o interrompeu - não importa o que você disser, nós só temos um ao outro, temos que permanecer juntos, não imposta o que aconteça.
- Daniella...

Ela colocou o indicador sobre os lábios do irmão, fazendo-o se calar, e sorriu:

- Escute bem, Di. Se tivéssemos que viver separados, não teríamos nascido juntos.
- Dani, eu não quero que você vá. Algo de ruim vai acontecer nessa viagem, eu sei que vai.

Mas Daniella não se intimidou com as palavras agourentas do irmão. Segurou-lhe o rosto e o obrigou a encará-la. Tinha um sorriso nos lábios, e a expressão serena e confiante de um anjo.

- Não podemos nos separar, Di. Nós nascemos para "derrotar a maldade e as trevas", lembra? Juntos, somos mais fortes que qualquer um, e podemos triunfar sobre qualquer coisa. Desde que estejamos juntos. Não se esqueça nunca disso.

Diogo não pôde conter o sorriso.

- Prometo que não vou esquecer.

Abraçaram-se com força, como naquela noite vinte anos atrás, como se o ato de soltarem-se fosse deixá-los à mercê dos monstros e demônios que habitavam seus pesadelos...

- Pertencemos um ao outro, maninho. Nunca se esqueça disso.


***


- Chama isso de festa, seu maníaco?
- E por que não chamaria? - ele sorriu, mostrando um par de caninos deformados e letais - ouça só a música - fez um gesto na direção das janelas, através das quais chegavam os sons de gritos, tiros e gargalhadas - isso sem falar das bebidas. Sangue de caçadores é mil vezes melhor quando bebido ainda quente, sabia?

Ela o encarou, entre furiosa e enojada. Ergueu a espada:

- Essa é a sua última
festinha, seu maldito!

O vampiro também sacou de sua arma, e riu:

- Você não passa de uma criança tola, se acha que pode me vencer!

***


- DIOGOOOOOO!

Eles os separaram e levaram cada um para uma cela. De nada adiantou Daniella gritar, chorar e espernear. Trancaram-na em um cubículo úmido e escuro no subterrâneo, e o tempo que passou ali se resumiu a um borrão de lágrimas e dor. Os vampiros apareciam a qualquer hora para tomar pequenos goles de seu sangue, mas isso era o de menos. Quando estava fraca e anêmica, eles se aproveitavam, e abusavam dela. Machucavam-na propositalmente, riam de seu desespero, propunham-lhe a transformação em troca da liberdade. Daniella jamais saberia se passara dias, semanas ou meses ali. Tudo o que soube é que estava deitada no chão, lágrimas escorrendo silenciosamente por seu rosto machucado, quando a porta se abriu. Não se mexeu, julgando se tratar de mais um daqueles malditos. Mas sentou-se de um salto ao ouvir uma voz conhecida:

- Dani, vamos sair daqui!
- Di... Diogo?
- Vem, Dani!

Ele agarrou-lhe o braço e ajudou a se levantar. Também tinha cicatrizes de mordidas no rosto e no pescoço, estava sujo e com as roupas esfarrapadas como as dela, e também tinha a aparência anêmica. Mas, por outro lado, estava inteiro. Ajudou-a a endireitar os andrajos em que sua capa de viagem e seu vestido tinham se transformado, e a puxou para fora.

- Diogo, como você conseguiu escapar?
- Fuga agora, perguntas depois. Vem, Dani!


***


Avançaram um contra o outro. As espadas se chocaram, produzindo um forte ruído metálico.

- Posso sim, vampiro maldito. Posso e vou, porque fiz um juramento!
- Que corajosa... seria comovente, se não fosse tão patético!

O vampiro avançou, mas a caçadora tinha treino o suficiente para repeli-lo sem muito esforço. As lâminas se batiam enquanto os dois rivais lutavam furiosamente. A agilidade e a força sobrenaturais do vampiro tinham encontrado uma oponente à altura na habilidade e técnica da humana. Ela o encarava sem medo. Sabia que ter medo deles era como oferecer o pescoço para que cravassem os dentes. Precisava encará-los como meros parasitas que eram, não atribuir-lhes características de deuses ou demônios. Só isso quase igualava a briga; um pouco de treino e uma espada com lâmina de prata cuidava do resto.

A luta estava bem equilibrada. Vampiro e caçadora se enfrentavam de igual para igual, olhos nos olhos, ele com os caninos à mostra, ela com os lábios contraídos, num silêncio rompido apenas pelo retinir da prata contra o aço e pelos ruídos lá de fora, como se um acordo tácito firmado entre ambos houvesse estabelecido que esse duelo só terminaria quando a vida de um deles se findasse...

- Por que não pára com isso e se alia a mim, caçadora?
- Jurei que te mataria, seu verme infernal! Jurei que livraria o mundo de você!
- E se o mundo não quiser ver livre de mim, menina?
- Eu fiz uma promessa. Sobre lágrimas e sangue me comprometi a destruí-lo ou morrer tentando. E é isso que vou fazer!

***


Daniella estava fraca e com o corpo todo dolorido, mas Diogo parecia estranhamente disposto. Saíram do subterrâneo, chegando a um longo corredor, que transpuseram em poucos instantes, saindo no salão de baile. Ele a fez parar e segurou-a pelos ombros:

- Dani, daqui pra frente você precisa ir sozinha.
- Mas você não vai vir comigo?
- Eu não posso, irmãzinha. Por favor, me perdoe... - ele desviou o olhar - só fiz isso por você.
- Não...
- Sim.
- DIOGO, SEU IDIOTA!

Deu-lhe um tapa no rosto, e recuou. Sentira a pele do rapaz fria sob seus dedos. Ele estava gelado. Pálido...

Morto.

Daniella começou a chorar.

- Por que você fez isso, Diogo? Por quê? Nós podíamos escapar, lord Belmont mandaria alguém atrás de nós, você... você não precisava ter vendido a alma para esses demônios!
- Você pensa que eu estou contente com isso? - o rapaz baixou a cabeça, e sua voz tornou-se um sussurro - por acaso acha que eu fiquei feliz por ser transformado num parasita como o que matou mamãe, Alonso e Eduardo? Eu repugno até a alma essa condição, Daniella. Mas... - a voz de Diogo ficou subitamente embargada - era o único jeito de te tirar daqui com vida.
- Mano...

O Sol logo nasceria no horizonte. O rapaz sorriu para Daniella.

- Mana, me prometa uma coisa.

***


Em poucas horas o Sol nasceria, e a luta se arrastava. Lá fora, partidários de ambos os comandantes se enfrentavam, afinal, as ordens dos dois tinham sido as mesmas: ninguém interferia na batalha particular deles. Aquele era um assunto que apenas o líder dos vampiros e a general dos caçadores poderiam resolver.

O brilho da Lua refletia-se no olhar dos comandantes e em suas espadas. O cansaço da humana era evidente, mas a proximidade da aurora enfraquecia o vampiro, inutilizando suas habilidades sobrenaturais. Ela começava a levar vantagem sobre o adversário, mas nem por isso deixava de ser um confronto feroz e letal. Os dois rangiam os dentes quando o som do choque de metal contra metal enchia o salão, e a cada avanço da humana o mestre do castelo recuava mais.

- Você não vai me vencer... - ofegou ele - você
não pode me vencer!
- Ah, é? - ela sorriu, um sorriso quase tão maligno quanto o do vampiro - pois olhe só... - mais uma vez as lâminas se encontraram, e ela sentiu o braço do inimigo fraquejar - ... é exatamente isso... - mais um golpe, e dessa vez ele quase sucumbiu - ... que está... - conseguiu cortá-lo no rosto, fazendo escorrer um filete de seu sangue escuro. O adversário recuou, tentando se manter firme no duelo - acontecendo!

A espada escapou da mão dele, ao mesmo tempo que uma dor aguda rasgou-lhe a carne imortal, na altura do estômago. Esse ferimento, somado a todos os outros que já tinha recebido (a prata não deixava o sangue vampírico agir nas feridas para fechá-las rapidamente), o fez cair de joelhos no chão por causa da dor. Ergueu o rosto para ela, e viu os olhos azuis marejados.

***


Ela enxugou os olhos e assentiu:

- Pode deixar Di. Vou dar tudo de mim para cumprir.

Ele balançou a cabeça afirmativamente, e uma lágrima vermelha rolou por seu rosto machucado.

- Não se esqueça, irmãzinha... só você pode fazer isso.
- ELES ESTÃO FUGINDO!
- Vai!

Daniella fez um breve aceno com a cabeça, e correu para o outro extremo do salão, às vezes escorregando no chão de mármore, olhos fixos na porta, esperando que a qualquer instante mãos geladas a segurassem, ouvindo as pragas e blasfêmias lançadas pelos vampiros...

Mas alcançou a saída incólume. Virou-se brevemente para trás e descobriu o motivo de não a terem capturado: as cortinas de uma das janelas estava aberta, e uma larga faixa clara do céu já extremamente pálido se refletia no chão polido de lado a lado do salão. Na outra extremidade do aposento, Diogo era facilmente identificável entre os outros, por não ter a mesma palidez cadavérica que eles, e por seus olhos não exibirem o tom escarlate que identificava os seres das trevas, continuavam negros, introspectivos, profundos. Mas subitamente a escuridão de seu olhar tornou-se cor de sangue. Estava cercado dos seus, deixara de ser o irmão de Daniella...

A jovem sentiu um aperto no coração. Mas foi forte o suficiente para sair sem olhar para trás.


***


E foi aí que se lembrou. Primeiro um flash daqueles olhos claros, daquele rosto bonito, daqueles cabelos castanhos. Depois mais outro, e mais outro... um quarto escuro, gritos... várias imagens relacionadas com aquelas lágrimas...

"- Não..."
"- Sim."


O tapa. Os gritos. Ele sorriu.

- Era você...

Ela assentiu, devagar.

"- Era o único jeito de te tirar daqui com vida."
"- Mano..."
"- Mana, me prometa uma coisa. Prometa que quando... quando chegar a hora..."


- Eu vou cumprir, Diogo.

O vampiro fechou os olhos e acenou afirmativamente com a cabeça. Quando tornou a encará-la, seu olhar era o mesmo de tempos atrás, da noite em que separaram. Daniella puxou a estaca que levava presa ao cinto. Ajoelhou-se diante dele e...

"- Quando eu me tornar como eles, quando não me lembrar mais de como é ser humano... é você quem tem que me destruir, Dani. Só você pode fazer isso."

A ponta afiada mergulhou no corpo dele. Soltou um pequeno gemido, um pouco de sangue escorreu por seus lábios, mas sorriu. Agora se lembrava de tudo... tocou o rosto da irmã com os dedos gelados. Enxugou-lhe as lágrimas.

- Tinha que ser assim, Dani... porque nós... pertencemos um ao outro...

Escorregou devagar para o chão, e caiu deitado de costas, os olhos escuros fitando inexpressivamente o vazio. Daniella sorriu, e pegou no bolso da capa o frasco que, milagrosamente, não se partira durante a luta.

- Se tivéssemos que viver separados, não teríamos nascido juntos... - fechou os olhos dele com delicadeza, e destampou o frasco - nós só temos um ao outro, temos que permanecer unidos, não importa o que aconteça. - tomou todo o líquido de um gole só, deitou-se ao lado do cadáver de Diogo e o abraçou - eu te amo, meu irmão.

2 comentários:

Adriana Rodrigues disse...

# Essse conto é muuuuuuito demais, você ganhou a AQ de maneira muito merecida com ele. *__* Ainda o leio até hoje, cê credita? xD
# Bjins!

Jessica Borges disse...

Adoro esse conto!
É, como eu já disse, o melhor que você já escreveu, Kate.
Ele é muito bom mesmo!