quarta-feira, 22 de abril de 2009

Os olhos do falcão (parte 2)

- Frank? Sou eu, Fred, me deixa entrar.
- VAI EMBORA!
- Francis, deixa de ser turrão e abre essa porta...
- EU JÁ DISSE PRA IR EMBORA!
- Mas...
- VAI LOGO!

Frederick suspirou, e encolheu os ombros. Olhou para Helena:

- A senhora viu, tia Lene. Ele não quer nem mesmo falar comigo.

A mãe de Frank assentiu, desanimada.

- Tudo bem, Fred. Venha, Dane já deve estar chegando.

Os dois foram para a sala. Assim que entraram no aposento, ouviram um galope de cavalo. O som parou, e alguns instantes depois o ruído das botas na varanda ecoou na sala.

Dane entrou, abanando a poeira do casaco com o chapéu.

- 'Tarde - falou, com seu sotaque acaipirado.
- Boa tarde, Dane - respondeu Helena, enquanto Fred levava a mão à aba de um chapéu imaginário.
- Ele está melhor, dona Helena?
- Não muito... as feridas cicatrizaram, já não sente muita dor, mas está completamente intratável.
- Tudo bem. Vem comigo, Fred. Vamos fazer aquele encrenqueiro sair do quarto.




- Frank, abre logo essa porta.

Era Dane. Francis bufou, e cobriu o rosto com o travesseiro. Não queria falar com os amigos. Não queria passar pela experiência torturante que seria ouvi-los e não poder ver seus rostos, seus gestos, seus olhares...

- Francis Diego García Wilkinson, você tem cinco segundos para abrir essa porta, ou eu vou arrebentá-la! Um...

Não. Dane não faria aquilo.

- Dois...

Se bem que... já tinha tido provas concretas de sua falta de noção.

- Três...

E a tranca da porta não era de prata.

- Quatro...
- Tudo bem, eu abro. Espera aí.

Frank sentou-se e depois, lenta e cuidadosamente, se levantou.

Tudo bem. Eu estou de pé, decostas para a cama. A porta é na parede em frente, um pouco para a direita. Vamos tentar.

Esticou as mãos diante do corpo e foi andando devagar, enquanto respirava fundo, tentando se manter calmo. Desde os treze anos, estava acostumado a enxergar bem durante dia e ainda melhor durante a noite. A súbita ecuridão que o envolvia parecia ter uma leveza opressora. O único local que ele considerava seguro, nas duas semanas desde o tiro, era acama.

Devo estar quase lá...

Mas justo quando estava começando a sentir-se confiante, começando a acreditar que conseguiria chegar até a porta, seu pé enroscou-se numa dobra do tapete, e ele caiu com joelhos e mãos apoiados no chão. Sentiu os olhos inutilizados se encherem de lágrimas de raiva. Raiva de ter caído. Raiva de estar cego. Raiva de ter levado o tiro. Raiva de ter se tornado um ser tão inútil que não conseguia nem abrir uma porcaria de uma porta sem ajuda...

- Frank abre logo - chamou Fred, e ele se levantou.
- Já tô indo.

Depois de mais alguns passos incertos, alcançou a porta. Tateou a madeira lisa até encontrar a chave. Girou-a e puxou a maçaneta.

Ao ouvir as exclamações de surpresa dos amigos, Francis reprimiu um sorriso. Pelo menos isso: não veria as expresssões de espanto deles, ao encontrar seus olhos desfigurados e cheios de suturas.

- Frank... - murmurou Dane - ah, céus...
- Sem pieguice, faz favor. Se vocês vieram aqui pra ficar dizendo "coitadinho de você, Frankie...", façam o favor de ir embora.

Virou-lhes as costas e sentiu a mão de um deles em seu ombro.

- Não é nada disso, Frank. Nós só viemos pra ver se você está bem.
- Que bom que vocês ainda podem ver se eu estou bem, não? - ele riu sarcasticamente - já viram, me deixem em paz.
- Francis, pára de ser idiota. Por que você não senta e conversa com a gente?

Agradecendo aos céus pela mão em seu ombro poupá-lo da indignidade total de pedir para o guiarem, ele foi para a cama, acompanhado por Dane e por Fred.

Acomodou-se entre as cobertas novamente, e ouviu as molas do colchão gemerem quando os amigos sentaram-se na cama. Dane falou em voz baixa:

- Frank, você sabe que pode contar com a gente. Pare de se esconder por trás desse orgulho bobo.

Era o mesmo tom que os humanos adotavam à cabeceira de um doente terminal. Imaginou a expressão de pena que os dois teriam no roto. A última coisa que ele queria na face da Terra era ser digno de pena... subitamente, toda a frustração, raiva e dor que acumulava nos últimos dias explodiu:

- Já mandei vocês dois pararem copm isso, OK? Chega! Parem de ficar fingindo que tá tudo bem, porquer não está! Aqueles caçadores de vampiros ainda estão soltos, os ianques conseguiram roubar o carregamento de ouro e eu fiquei cego!
- Frank, pára de bancar a vítima! - gritou Dane - você não é esse bebê chorão! Acha que foi fácil te tirar de lá com vida, te trazer para cá, buscar o médico e tudo o mais? Acha que está sendo divertido para nós?
- Ah, é? Então por que você não troca de lugar comigo?

Houve alguns instantes de silêncio. Parte de Frank dizia que ele estava sendo injusto e egoísta com Dane e que devia pedir desculpas, mas a outra parte estava extremamente satisfeita com o silêncio triste e constrangido que se seguiu a suas palavras. Quando Dane falou de novo, sua voz estava ainda mais suplicante e chorosa:

- Você tem que sair desse isolamento, Frank. Nós só queremos te ajudar.

Ele baixou a cabeça, e não respondeu. Pelo tom de voz e pela respiração controlada, podia calcular o desespero de Dane. Quase podia ver-lhe a expressão triste na mente.

Daniella era a criatura mais adorável do Arizona quando não estava sob aquele disfarce de cowboy. Era uma italiana criada nos Estados Unidos, cujos pais tinham fugido de Ross Van Helsing e seu exército em Nápoles. Tinha um rosto corado e franco, olhos de um tom perdido entre o azul e o verde, cabelos ondulados e cor de ouro sempre curtos e cobertos pelo chapéu. Era corajosa e sincera, de um jeito quase ingênuo de tão intenso. E determinada, tanto que Frank sabia que elaera capaz de ter posto a porta abaixo, caso ele não tivesse aberto.

Era quase impossível não ceder apelos quase infantis que ela fazia com seu jeito meio vaqueiro, meio menina, meio vampira. Só que Frank, afundado no desespero e na auto-comiseração, resistiu bravamente:

- Vocês ajudariam muito se fossem embora e me deixassem me recolher à minha inutilidade como pessoa, pistoleiro e vampiro.
- Frank...
- É sério. Vão embora.

Fred, que até então se mantivera quieto, pronunciou-se pela primeira vez:

- Sabe, não vai adiantar nada nós dois não desistirmos de você, Frank, se você mesmo já tiver desistido.
- Demorou pra perceber, hem, gênio? - ele soltou mais uma risada ácida e carregada de ironia - parem de bancar os heróis querendo salvar o garotinho desamparado, porque eu não quero ser salvo. Agora, por favor, saiam do meu quarto.
- Se é isso que você quer - murmurou Dane.
- É.
- Tudo bem - disse Fred, se levantando - mas lembre-se, Frank, nós nem sempre queremos o que é melhor para nós mesmos. Vem, Dane.

A garota se levantou, e os dois saíram. Quando a porta se fechou, Francis deu um suspiro profundo e virou o rosto na direção do calor do sol.

Ele chegou sorrateiro, instalou-se devagar, foi sussurrando idéias no ouvido do rapaz, crescendo, tomando forma. Um plano.




Helena sentou-se à mesa da cozinha, com um suspiro.

- Tentamos todos os argumentos possíveis, tia Lene - disse Fred, passando os dedos pela cabeça e despenteando seus cabelos cor de fogo - mas ele está decidido a ficar vegetando naquele quarto.
- Tudo bem, meninos. Pelo menos vocês tentaram. Mas eu já devia saber que não ia dar certo, agora só tem uma pessoa que pode ajudá-lo.
- Quer que a gente vá procurar essa pessoa, dona Helena? - perguntou Dane.
- Não, meus queridos. Vocês já fizeram o suficiente, agora eu tenho que cobrar uns favores antigos. OK?
- OK - fizeram os dois. Daniella colocou o chapéu - já vou, tenho que resolver uns problemas no rancho dos meus pais. Arrivederci, pessoal.

Os outros dois acenaram, e ela saiu. Quando a porta se fechou, Frederick deixou-se afundar numa cadeira. Helena sorriu com doçura.

- Fique calmo. Ele vai melhorar.

Fred bem que tentou sorrir, mas não conseguiu. Passou as mãos pelo rosto sardento e queimado de sol.

- Eu não tenho tanta certeza, tia Lene.

A mãe de Francis levantou-se e foi até o jovem vampiro ruivo. Abraçou-o e o beijou no topo da cabeça. Costumava chamar Fred de "meu filho de olhos claros", já que o amava e cuidava dele realmente como mãe. O tinha encontrado em uma viagem à Sibéria, há doze anos, em uma cabana nas montanhas, com os pais já quase mortos. Ela o levara consigo, atendendo aos apelos dos dois moribundos, que viveram apenas o suficiente para implorar que cuidasse do menino e dizer que o nome dele era Frederick Taylor. Enfrentava qualquer coisa por ele, até mesmo as velhas fofoqueiras, que se perguntavam em voz alta como uma mexicana descendente de índios, com pele morena e cabelos escuros, podia ter um filho branco, de rosto sardento, olhos azuis como o céu das pradarias e cabelos num tom de sol poente. Transformara o garoto assim que chegaram aos Estados Unidos, fazendo assim com que, embora ele não fosse filho de seu ventre, se tornasse filho de seu coração.

- Não duvide do Francis. Ele tem sangue guerreiro. Descende de soldados corajosos, tanto astecas quanto espanhóis, e apesar dessa mania de dramatizar, ele é um rapaz valente.
- Será que o Frank vai superar isso, tia Lene? Ele tá muito mal.

Helena riu, e arrumou os cabelos bagunçados de Fred.

- Até parece que você não o conhece. Quando está contente, Frank acha o céu mais azul, as flores mais perfumadas, o deserto menos quente e os urubus menos feios. Mas quando sofre, faz questão de que o mundo todo saiba que ele é a mais infeliz das criaturas.

Ele riu, e se levanou.

- Tem razão, tia Lene. Vou dar uma volta no rancho, para ver se as reformas dos celeiros e dos moinhos estão em ordem, depois vou tentar falar com ele.
- Faça isso. Eu vou sair, tenho que mexer uns pauzinhos, ver se consigo ajudar o Frank.

Enquanto Fred saía pela porta dos fundos, Helena foi buscar uma capa de viagem e depois saiu pela porta da frente. Ambos tinham uma pequena esperança de que quando voltassem, Frank estaria melhor...




Duas horas mais tarde, quando Fred entrou no quarto do amigo, ele tinha sumido.

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